domingo, 17 de abril de 2011

Atenção: texto que pode ferir susceptibilidades

“De certeza que és daqueles que entopem o trânsito se te cheira a acidente mais à frente, abrandas, travas, esticas a cabecinha curiosa a ver quantos carros, se se foderam todos, se há feridos graves a agonizar no chão, com o bombeiro à rasca para estancar o sangue, outro bombeiro que não atina com aquelas talas de pôr o pescoço, topas logo, sentencias, este não aguenta até chegar a ambulância, e atrás de ti um comboio vagaroso de outros maduros como tu, todos a esticar a cabecinha, todos a apostar se vinha depressa demais, se foi óleo que havia por ali, se foi o carro da frente que mudou de faixa sem fazer sinal, gostas de ver e de imaginar o que aconteceu, problema nenhum, vai de manguito se alguém te apita para te despachares, precisas de tempo para absorver a imagem toda, precisas de um nadinha de horror dos outros, faz bem à alma, pensas antes tu que eu, antes tu que eu, a desgraça dos outros lava-nos por dentro, alivia uma parte, há uma pedagogia, quando vemos outra gente a segundos da morte certa, ou de uma vida na cadeira de rodas, a babarem-se para um guardanapo de plástico, outra vez bebes, outra vez dependentes, são afinal coisas que nos fazem sentir bem, porque todas as nossas merdas parecem agora pequeninas, comezinhas, por que é que os psiquiatras não dão consultas à beira da estrada, naquelas curvas mais apertadas onde dia sim dia não um porreiro espeta a cornadura, está a ver como os seus problemas se hão-de resolver, ora aquele senhor com a cabeça dentro do volante e a boca cheia de vidros, ora isso sim é um problema.”

Canário, Rodrigo Guedes de Carvalho (página 97)

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